O fim da era dos escraviários?

A entrada em vigor da nova Lei do Estágio pegou grande parte das empresas desprevenidas. Agora, elas precisam se adaptar aos limites e exigências que a legislação impõe em defesa dos novatos

Fossem outros os tempos e, certamente, muitas empresas estariam enfrentando a crise global com a tática de substituir profissionais por estagiários, na lógica de que se trata de uma gente que faz quase tudo e com direito a quase nada. Uma nova legislação inaugura, porém, uma nova era nesta relação entre a empresa e os novatos que ainda cursam a universidade. A temporada de assinatura de contratos de estágio, que deve ser aquecida em março, exigirá de empregadores e instituições de ensino muita atenção para atender às novas exigências – aí incluídos limites de carga horária, concessão de benefícios antes impensáveis e, também, normas sobre as funções que os estagiários podem desempenhar.

O projeto de lei sofreu vários ajustes desde que recebeu seu primeiro esboço, em 2003, até começar a vigorar, no final de setembro. Apesar de ter contado com a participação de segmentos ligados à formação estudantil e profissional, a Lei 11.788 pegou desprevenidas muitas corporações – já atordoadas com o colapso da economia global.

“Além do estouro da crise mundial, a lei vigorou sem prever um período de implantação, o que gerou um grande estresse, pois as empresas têm de se reorganizar”, relata Cláudio Inácio Bins, gerente de relações institucionais do Centro de Integração Empresa-Escola do Rio Grande do Sul (CIEE/RS).

A expectativa é de que a lei impacte com mais força as pequenas empresas, cujas estruturas jurídicas trabalham com recursos modestos. Além de ter chegado quase ao mesmo tempo em que eclodiu o crash financeiro, o momento em que a lei foi colocada em vigor não agradou às empresas por um outro motivo. “Em setembro, os estágios estavam em plena execução, na metade do período contratual. Muitas firmas não tiveram tempo de preparar a revisão de suas políticas internas”, diz Lucimara do Nascimento, coordenadora de estágio do Instituto Euvaldo Lodi (IEL) do Paraná. Segundo ela, a lei estabeleceu os mecanismos obrigatórios, mas não esclareceu como deveriam ser aplicados.

“As empresas ficaram perdidas”, reclama Lucimara. Apesar das ressalvas, ela está otimista e dá conta de que as adaptações estão em marcha. “É preciso esperar, mas como é cultural o Brasil ver o jovem como o futuro do país, não há dúvida de que as empresas vão se remodelar de forma a continuar abrigando estudantes para transformá-los em futuros profissionais”, acredita.

De acordo com a Associação Brasileira de Estágios (ABE), o país oferece atualmente 1,1 milhão de vagas na área. Dos 4,6 milhões de estudantes de ensino superior, 715 mil são integrantes de programas de estágio. No ensino médio, que tem 8,9 milhões de alunos, 385 mil são estagiários.

As mudanças, na prática

No mercado de trabalho, um dos aspectos da lei que mais geram expectativa é a delimitação da carga horária, que agora varia de quatro a seis horas por dia, conforme o nível de ensino (veja o quadro a seguir). “Não é todo estudante que consegue atender às demandas da escola ou da universidade, tendo poucas horas do dia para estudar. Agora, a lei permite que todos tenham tempo para uma melhor preparação”, salienta Carlos Henrique Mencaci, presidente do Núcleo Brasileiro de Estágios (Nube).

Além de listar critérios importantes para a vida do estagiário – como direito a férias e remuneração -, a Lei do Estágio define obrigações às instituições de ensino. “É extremamente importante que os núcleos de ensino adaptem seus planos pedagógicos para retirar o estágio da simples formalidade acadêmica e criem ferramentas para que a atividade exercida seja complementar à formação estudantil”, assinala Natalino Uggioni, superintendente do Instituto Euvaldo Lodi (IEL) de Santa Catarina. Este é um ponto crucial, na visão do especialista em Educação Fernando Becker. Professor de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Becker considera fundamental que o estudante exercite na prática os conteúdos teóricos que recebe na faculdade. “É confrontando seus conhecimentos e tendo contato direto com a realidade de seu ofício que ele vai se preparar para o mercado de trabalho formal”, sustenta.

“É extremamente saudável que o aluno aplique o que aprende – o que não pode ser feito se ele está exaurido de suas forças”, reforça Hermes Rosa, professor de Direito do Trabalho da Universidade Regional de Blumenau (Furb). “E sempre é preciso lembrar”, destaca Hermes, “que o jovem é um aprendiz, e não um profissional”.

Aliás, foi por reconhecer o estágio como principal instrumento de preparação profissional que o senador Osmar Dias, do PDT do Paraná, redigiu a lei. “Muitas empresas contratavam estagiários para substituir empregos formais e, com isso, tinham mão-de-obra barata”, observa Dias, que se intitula “crítico à banalização que a função tomou no ambiente corporativo”.

Em breve, adianta Dias, a norma deverá sofrer uma alteração. Ele quer expandir de dois para quatro anos o período máximo de estágio em uma mesma organização. A luta, defende, “é para que esse trabalhador qualificado tenha mais condições de ser imediatamente integrado ao quadro formal de colaboradores”. Será o fim da era dos escraviários?

As principais novidades da Lei do Estágio


Direito a férias de 30 dias depois de um ano de contrato. Caso o período de estágio seja inferior a um ano, o recesso será proporcional;
Poderão estagiar estudantes de educação especial, dos anos finais do ensino fundamental e estrangeiros;
A remuneração é obrigatória, exceto quando houver acordo de contraprestação ou em casos de estágio obrigatório;
Auxílio-transporte é obrigatório;
O tempo máximo de duração do estágio se restringe a dois anos, salvo para contratos de portadores de deficiência;
Para estudantes de educação especial e de anos finais do ensino fundamental, o estágio fica limitado a quatro horas diárias. Para ensinos superior, médio e técnico, são seis horas por dia;
As empresas podem contratar quantos estagiários de graduação quiserem, desde que haja um funcionário orientador para cada dez estagiários.

Obs: As novas diretrizes valem para todos os contratos firmados ou renovados a partir de 26 de setembro de 2008.

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